sábado, dezembro 13, 2008

Cutback


Guarujá, verão de 1994
U
m, dois anos depois? O tempo não significa nada diante dos amigos de infância que estudaram, cresceram, viajaram, viveram e surfaram juntos tantas vezes.
Pleno domingão de feriadão e segundo turno da eleição municipal e lá estavam os dois de novo pegando a estrada cedinho. Chegando lá, a primeira providência é a velha Bono chocolate e um pão de milho com requeijão para sustentar o moedor de carne [corpo de surfista depois de um dia de ondas]. Mais um pouco e um momento fundamental, sempre uma grande torcida: como estará o mar?

Ondas pequenas. Eu já ia desanimando, mas o velho Português, sábio lembrador das manhas e segredos de nosso pico, enxergou algo mais, “não, tem umas ondas, e tá formando legal”.

Logo estávamos lá fora, logo pintaram as primeiras paredes, límpidas, belas, vestidas de um mágico verde azulado, a cor da inocência e das nossas melhores lembranças.

Lembranças, incrível que depois de 15 anos de surfe junto do irmão da vida [aquele tipo de amizade eterna só possível com os anos de convivência na escola e, sobretudo, nos papos nas tardes fora dela], são sempre as mesmas. De amigos e amigas, de paixões e viagens, sobretudo daquelas pessoas especiais de um tempo e colégio que não voltam mais.

Pausa no álbum de fotografias e momentos marcados com tanta força [mesmo depois de tantos anos, como é possível?], recordados lá atrás, onde o silêncio, paz e verdade do mar nos lembram apenas o que é inesquecível. Pausa para o presente, essa explosão de energia, inspiração e desabafo chamado surfe.

Pausa para o moderno, para minha incrível pranchinha nova, tão mais veloz, controlável e capaz que minha velha companheira de tantos anos. Duro perceber, mas romantismo nessa hora é besteira: por que perdi tanto tempo com minha prancha velha? Inacreditável a evolução instantânea que me está me permitindo essa menina nova, verdadeiro brinquedo maravilhoso de descobrir e inventar novos caminhos e movimentos nas ondas.

Vem uma das melhores ondas da manhã e engato uma velocidade jamais imaginada, e no caminho tá o brother, gritando, incrível como não dá vontade de sair, caraca, quase o atropelo e ainda brinco com o idioma dele, usando o sotaque e palavras portuguesas, “car..., lá vinha o gajo voando totalmente fora de controlo”...

Foi então que o Português disse a palavra mágica, rindo, “pensei que você ia VIRAR”...

Incrível, eu estava curtindo tanto o excesso de velocidade, que simplesmente tinha esquecido o tão vivo e energizante cut-back, a curva para o outro lado, que nos permite cortar a onda e depois voltar de novo para a parede que se abre, formando um S maravilhoso de baixo para cima.

E lá fui eu, na próxima menina perfeita [é, brothers, tava pequeno mas com aquela formação clássica, verdadeiro playground para longos passeios marinhos], dei aquela virada e voltei na maior tranquilidade!, que equilíbrio tem essa prancha!
CUT-BACK! O corte para trás, a virada para o passado, sem perder a conexão com o futuro, para a nossa onda que está arrebentando na outra direção. Não é isso o que rola em toda session como essa, sagrada, com um irmão da vida? Não é isso o que significa lembrar quem foi tão importante e imaginar se ainda pensam na gente como pensamos?

Cutback! A manobra e as recordações ficam ainda mais poderosas nas palavras do Português, um cara que consegue guardar ainda mais lembranças que este aqui. Claro, o cara é português, o povo que criou a palavra saudade...

Fim do surfe, estrada de volta e o lusitano começa a gritar quando o som do carro despeja aquele bom e velho Metallica tocando peso e melodia, fúria e delicadeza [segredo dos mestres do rock] do álbum preto. Resgata um antigo ritual de “dois jovens indígenas de anos atrás”. Resgata a vida em um de seus momentos mais significativos, um simples bate-volta para surfar.

Mas a vida continuou e dá uma inveja gostosa quando ele fala da filhinha. Quando ele fala o que é ter o grande sonho de minha vida.

Um dia ainda escutarei a frase mais esperada: “boa noite, papai”. Porque se o português pirou em um lance, “não tem uma música do Metallica que chama Don´t give up?”. Não, respondi, mas ele acertou ao aconselhar a canção que só ele conhece.

Don´t give up. Não desista. Jamais.
(o2/11/2004)

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