sábado, agosto 29, 2009

O cinema que tenta mudar o mundo


Os franceses não querem os imigrantes ilegais que alcançam sua cidade de sonhos e desespero chamada Calais. O porto de Calais, no norte do país. Do outro lado do mar está Dover, Inglaterra, país que trata melhor os imigrantes e lhes oferece mais oportunidades de uma vida melhor. Entre os dois portos está o mar raivoso e gelado do Canal da Mancha.
Só há duas maneiras para os imigrantes clandestinos, transformados em refugiados mal tratados e isolados em Calais, chegarem a Dover.
Como essa viagem é proibida pelos dois governos europeus envolvidos, os ilegais escondem-se em caminhões de carga que atravessam o canal de balsa. Escondem-se em lugares inimagináveis desses caminhões, em condições terríveis. A outra alternativa é mais uma roleta russa: enfrentar o mar. Essa é a escolha do jovem Bilal, um menino de origem curda, que chegou a Calais depois de percorrer milhares de quilômetros desde o seu país, o Iraque em guerra do qual fugiu. Sim, Bilal quer nadar até a Inglaterra. Detalhe: ainda precisa aprender a nadar. O jovem prefere encarar todos os perigos do mar do que conviver com uma cidade onde os próprios franceses, se ajudassem os imigrantes, eram presos, por lei.
Calais é “...num certo sentido, a fronteira mexicana da França. Uma terra de ninguém onde busca por oportunidades e sistema repressivo se chocam em torno de leis que excluem os novos chegados”, escreveu Luiz Carlos Merten no Estadão.
Graças que o filme “Bem-vindo” tenha causado tanto furor e debate na França que essas leis intolerantes estão sendo derrubadas no país. E nesse ponto, o humanista crítico Merten mostra o formidável feito do diretor do filme “Bem-Vindo”, Philippe Lioret: mudar um pouco a sua França racista e o mundo.
De volta ao filme, há mais luta e coragem na odisseia deste menino iraquiano que em todos os filmes sobre lutadores que o cinema já fez. Para quem criticar o absurdo da missão quase impossível dele (cruzar o Canal da Mancha), lembre-se: pessoas desesperadas - especialmente povos que fugiram do horror da guerra ou miséria - só conhecem um sentimento: arriscar tudo. E para Bilar ainda há outro motivo colossal: ele quer a Inglaterra porque lá está a menina que ama. Há ainda seu sonho de jogar no Manchester United.
Como preparar-se para o impossível? Ele terá a ajuda de um professor de natação francês, ex-campeão nacional e um homem destruído pelo fim de seus casamento. Simon enxergará no garoto desesperado a coragem que ele não teve para lutar por sua mulher. E o francês o ajudará, no começo, por um motivo menos nobre: impressionar a ex-mulher, um professora que faz trabalho voluntário para ajudar justamente os refugiados. Só depois o professor se conscientizará que ajudar aquele garoto era a coisa certa a se fazer.
A relação inicial entre Bilal e Simon lembra o conflito do mestre e lutadora de “Menina de Ouro”. Tensão que logo vira uma relação paternal, verdadeira. Também porque não há coração decente que resista ao sofrimento dos refugiados em Calais e à luta insana do menino Bilal para fugir de lá por amor. O amor que é a única coisa que lhe resta.
“Bem-Vindo” é mais uma poderosa história de sobrevivência, crítica e sonho do cinema francês de hoje. Uma história que torna muitas histórias de boxeadores e lutadores de Hollywood, em pequenas. Porque o jovem iraquiano desse filme vai enfrentar um inimigo muito maior e desafiador que qualquer peso pesado dos ringues. Nas águas congelantes, escuras e de correntezas fortíssimas e traiçoeiras do Canal da Mancha, não há toalha de treinador a ser jogada quando a coisa está preta. Não há descanso entre os rounds. Não há gongo salvador.
Só há a valentia de um menino que não quer perder sua única razão de viver, a doce Mila.
Viver? O poster deste filme está pregado na parede do meu quarto. Pois a bravura e amor de Bilal só nos deixa uma opção: lutar para chegarmos aonde mais queremos, sem esmorecer mesmo quando enfrentamos obstáculos brutais em nossos caminhos. Mesmo quando enfrentamos o impossível.
“Parece improvável? É. Fábulas são improváveis. Mas, quando têm força, dizem muito sobre a tal da vida real. Colocam tudo no limite e em perspectiva. E, então, o bom senso e o pensamento convencional é que se tornam absurdos.”

(Luiz Zanin, O Estado de S. Paulo, 10/07/09)

* Infelizmente, este filme já saiu de cartaz. Resta torcer para ser lançado em DVD, ou descobri-lo na internet.

Nenhum comentário:

Postar um comentário