sexta-feira, março 02, 2012

O artista - Por uma vida mais real

Houve um tempo em que a vida parecia acontecer em preto e branco.  As opções em produtos e atividades eram poucas. Nos anos 60 e 70, o único aparelhinho tecnológico que seduzia os homens por muito tempo era a televisão. Só que essa tv tinha poucos canais e poucos programas. E não passava qualquer jogo que você quisesse ver. Quem tinha um time do coração precisava ir ao estádio para vê-lo. Precisava viver a emoção real do jogo ao vivo. 
Eram tempos ainda sem tanto curso disso e daquilo pra ocupar o “tempo livre”, muitas vezes sem um interesse real e profundo. Eram tempos em que as pessoas viviam o tempo livre mergulhados num livro ou brincando, jogando e vivendo ao ar livre. 

Até uma paixão universal como a música oferecia um processo mais bonito e humano: para ouvirmos um artista tínhamos que colocar o LP num aparelhinho que vários escutavam ao mesmo tempo. E era preciso esperar meses, como se aguardássemos a chegada de um grande amigo ou paixão que viajara, para ouvirmos o novo álbum de nossa banda preferida. E que gostoso e que experiência muito mais rica era escutarmos pela primeira vez os belos bolachões de vinil (depois de namorarmos e tocarmos aquela capa enorme) junto dos amigos, com o som se expandindo das velhas mas comunitárias vitrolas. E como era bacana também quando uma modernidade como a pequenina fita cassete virava presente para alguém querido. A gente dava o máximo de nosso bem querer para fazer uma coletânea dos sonhos. E escrevíamos de próprio punho o nome das canções, com algo que necessitava de capricho, cuidado e carinho chamado caligrafia.

A vida era em preto e branco, pelas poucas opções em produtos, mas paradoxalmente, pareciam muito maiores as opções para se viver. Ou alguém aí acha que ter à disposição milhares de joguinhos é um cardápio maior que o oferecido pelas antigas brincadeiras de rua? E os cursos? Hoje podemos fazer curso de qualquer coisa e qualquer idioma, mas será que isso nos enriquece mais que o antigo hábito de lermos muitos livros, sem distrações? Será que as inúmeras opções não acabam fragmentando nossa capacidade e formação?
Todo esse longo preâmbulo, realista e não saudosista, trago para manifestar minha tristeza pelos comentários dos adolescentes e jovens sobre essa obra-prima que acaba de ganhar o Oscar, o filme francês O artista. “Ah, é em preto e branco”, “ah, o cara fica dançando e fazendo careta”, “não tem fala”, “é uma coisa velha”, e o pobre blá blá blá multiplica-se.  O pior é que a maioria dos comentários vieram de moleques que não viram o filme, presos que estão aos seus pré-conceitos e à ditadura do novo e do moderno vendida pela mídia.
Não sabem o que estão perdendo. Não sabem que perdem a interpretação máxima que um ator e atriz precisam ter devido à ausência de cor. Como minha sábia mãe professora e amante do cinema e da vida sempre disse, o preto e branco obriga o ator a ser muito expressivo e dizer muito com “meros” olhares. Não há o recurso da cor e suas milhares de tonalidades e nuances para disfarçar uma expressão facial pobre. O preto e branco é um farol que ilumina apenas os grandes mestres da interpretação como este fabuloso Jean Dujardin, protagonista do filme que vai do tom debochado e engraçado à paixão, amor e dor de uma cena para a outra. O mesmo faz sua eletrizante parceira em cena, Berenice Béjo.
E se os jovens querem uma ação vertiginosa – oferecida pelos joguinhos e pelos vazios filmes blockbusters de aventura - O artista ainda oferece o ritmo alucinante da rápida queda de uma grande estrela do cinema, o George Valentim feito por Du Jardin, da fama ao esquecimento, solidão e pobreza em pouco tempo.
E se os jovens querem diversão, ela está mais que garantida por esse adorável e engraçadíssimo cãozinho que é o companheiro fiel do astro do cinema na glória e no fracasso.
O problema é que nem ao cinema os adolescentes e muitos jovens vão mais. Como bem escreveu na Folha de ontem o jornalista Marcelo Coelho, ir ao cinema decresceu tanto na molecada que os professores agora inventam passeios para o cinema para garantir um mínimo de formação cultural e arte aos seus alunos. Coelho mostra que a ida ao cinema parece a velha ida ao teatro com a escola. Ah, mas e o DVD e a tv a cabo? Preciso dizer que tipo de filmes e canais a meninada assiste?
Graças aos raros pais que ainda mantém o saudável e belo costume de levar os filhos ao cinema, guiando-os em filmes-caminhos desconhecidos, em vez de apenas levá-los para ver o novo blockbuster que a grande mídia tenta nos enfiar goela abaixo.
Graças aos professores que arrumam um tempinho e uma brecha no conteúdo das apostilas para exibir um filme rico aos seus alunos. Obras que eu denomino de “filmes de formação” por apresentarem e discutirem os mais importantes fatos e valores de nosso mundo, de ontem e hoje.
Não viu ainda O artista? Dê uma chance à verdade do preto e branco e descubra ainda como é possível se emocionar num filme mudo, no tipo de filme que nos legou o talvez gênio maior da história do cinema, Charles Chaplin.
Parabéns ao Oscar por valorizar não um filme ao estilo antigo – como críticos superficiais insistem em classificá-lo – mas um filme super atual, para quem defende uma vida mais bela, por resgatar a interpretação e poesia perdida pelos excessos dos efeitos especiais mirabolantes.
Parabéns ao Oscar por valorizarem a perfeita definição do cinema dada pelo cineasta Nicholas: “O cinema é a melodia do olhar”.
Mas como fazer os jovens olhares e se concentrarem num simples olhar se são cada vez mais bombardeados por aparelhinhos, aplicativos, softwares, joguinhos, fones de ouvido ultramega potentes (para delírio dos médicos otorrinos...)?
Como resgatar a poesia sufocada pela fúria da velocidade, barulho e alienação?
PS – Não se convenceu? Tente então dois outros filmes primeiro, coloridos e falados... Em Os Descendentes, o destaque é a jovem Shailene Woodley que faz a filha mais velha de George Clooney. Em seu primeiro papel no cinema, a adolescente produz mais efeitos e eletricidade com seus pequenos, ligeiramente puxados e ultraexpressivos olhos que todo o elenco reunido dos canais adolescentes que infestam a tv a cabo. Da ternura à raiva, da rebeldia sem causa à atitude para defender a honra de seu pai, ela é um soco na cara na apatia ou afetação de jovens atorzinhos e atrizes sem o mínimo talento.
Já em O homem que roubou o jogo, Brad Pitt faz um dos mais belos trabalhos de sua carreira como um homem que arrisca tudo por uma ideia jamais tentada antes. Há uma cena dele acelerando o carro enquanto escuta uma canção da filha que Pitt simplesmente condensa todos os sentimentos mais fortes possíveis no ser humano em segundos. E detalhe: ele faz isso  mal mostrando os olhos, apenas deixando cada linha e ruga de seu rosto falar-explodir sem falar. Coisa de grande artista, coisa do antigo bonitão que virou um grande, e a cena ainda conta com uma fotografia deslumbrante, com pouca luz e sombras sendo incendiadas pela atuação do marido de Angelina Jolie.

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